quarta-feira, 13 de abril de 2011

Plágio na era digital

O doutor em bioquímica Andreimar Soares perdeu o emprego na USP: punição exemplar
Por quase duas décadas, o doutor em bioquímica Andreimar Soares, 45 anos, percorreu trajetória típica dos bem-sucedidos no universo acadêmico. Publicou 115 artigos científicos, foi laureado com prêmios, recebeu bolsas de estudos, orientou e avaliou dezenas de estudantes de mestrado e doutorado de todo o país. Também catedrático da Universidade de São Paulo (USP), na semana passada ele viu sua reputação desmoronar quando veio à luz a informação de que um de seus trabalhos, publicado três anos atrás na prestigiada revista Biochemical Pharmacology, trazia imagens e gráficos copiados de outra obra científica. A própria ex-reitora da instituição, Suely Vilela, teve participação na pesquisa, mas apenas num trecho que, concluiu-se, não era fruto de usurpação de ideias alheias. O caso, objeto de uma investigação da comissão de ética da USP havia um ano, não só manchou para sempre um currículo até então irretocável como custou ao acadêmico o emprego na universidade. Diz o reitor João Grandino Rodas, de quem veio a palavra final: "Que o castigo tenha um efeito pedagógico para os demais, espantando a praga do plágio".

Não se trata de um problema circunscrito à academia, mas que está disseminado por todas as áreas da produção intelectual, desde a Antiguidade. À luz da legislação, plagiar significa usurpar ideias alheias sem lhes dar o devido crédito, um ato passível de punição. Mesmo que o conceito seja cristalino, existem nuances na concepção de plágio, que variam segundo a área para a qual se olhe, e ainda certa subjetividade na sua interpretação. Nas artes plásticas, por exemplo, se os elementos da obra original são a essência da suposta cópia, considera-se plágio. Esse não é o caso de inspirações como a que teve o pintor Pablo Picasso (1881-1973) ao pôr-se diante do célebre quadro Déjeuner sur L’Herbe, do impressionista Édouard Manet (1832-1883). Nas reinterpretações do espanhol (foram ao todo 200 esboços com a cena do piquenique), veem-se claramente seus traços característicos. É isso que confere à obra forte conteúdo autoral e faz dela algo original.

Na academia, o plágio vem sendo objeto de discussão desde o século XVIII, quando surgiu na Inglaterra a pioneira lei de propriedade intelectual. Ao proteger a autoria das ideias, ela proporcionava retorno financeiro, e por vezes renome, a seus criadores. Fomentou-se assim a produção de conhecimento, garantindo-se que cada obra funcionasse como uma etapa numa cadeia de inovação bem maior. O conceito básico persiste até hoje. Todos os casos de plágio em universidades afrontam a lei de direitos autorais - e constituem, não há dúvida, um ataque a um pilar sobre o qual se ancoram a inventividade e o avanço do conhecimento. Conclui o jurista Eduardo Ghiaroni Senna, especializado no assunto: "O plágio é um desestímulo ao mérito e um entrave ao progresso intelectual".

Embora cause espanto devido às credenciais dos envolvidos, a história protagonizada pelo professor da USP é mais comum no Brasil do que se pode supor - e sua incidência só aumenta. A razão diz respeito às mudanças recentes na própria forma de conceber e divulgar o conhecimento, revolucionada pela internet da década de 90 para cá. "O acesso fácil a todo tipo de informação no computador, inclusive àquela de alto nível acadêmico, tornou a reprodução de conteúdo uma operação tão tentadora quanto trivial", resume o professor de metodologia científica Marcelo Krokoscz, hoje debruçado sobre o tema. O caso da USP é emblemático do fenômeno: a fraude materializou-se justamente porque as imagens surrupiadas, captadas por um microscópio, circulavam livremente na rede, com qualidade suficiente para proporcionar uma boa cópia.

É algo que se alastra desde a graduação até o panteão dos cientistas de mais alta estirpe. Uma tendência para a qual uma pesquisa recente, de abrangência nacional, deu os primeiros números. Sob o comando do especialista Pedro Luengo, foram ouvidos 585 professores universitários. Indagados sobre se já haviam flagrado casos de cópia de conteúdo feita por alunos, 82% deram resposta afirmativa. Um número espantoso, até porque está subestimado. Parte do plágio, afinal, passa incólume aos olhos mais desatentos. A situação no Brasil ecoa, em graus bastante semelhantes, o que ocorre no cenário internacional. Um dos maiores levantamentos já feitos acerca do tema, conduzido pela instituição especializada The Center for Academic Integrity (que reúne centenas de universidades americanas), trouxe à tona o ponto de vista dos alunos. É estarrecedor. Quase 80% dos entrevistados admitem já ter copiado obras alheias pelo menos uma vez na vida, sem se preocupar em citar a fonte.

O combate à prática, que já começa a tomar corpo em universidades estrangeiras, é ainda incipiente no Brasil. Algumas das melhores instituições de ensino superior do mundo, como as inglesas Oxford e Cambridge e o americano Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), deram a partida na caça aos plagiadores com uma iniciativa simples, mas decisiva: elas definem, com regras claras e amplamente difundidas entre alunos e professores, o conceito de cópia e suas punições. Não raro, até exigem dos estudantes que assinem um termo em que eles se comprometem a não incorrer no erro. Citações de textos e ideias de outrem, só com o devido crédito. Essas instituições também já usam softwares feitos para atestar a originalidade dos trabalhos, vasculhando a rede em busca de eventuais cópias - sistema recém-implantado no Brasil pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e pela Universidade Anhembi Morumbi. "Combater o plágio é trabalho que exige disciplina e persistência", afirma o diretor do programa de ética em pesquisa da Universidade de Michigan, Nicholas Steneck.

Todas as iniciativas serão inócuas se não se atentar para um fator pouco comentado, porém determinante para que o plágio se dissemine - o despreparo dos professores para as novas demandas do mundo digital. Explica o especialista Ryon Braga: "O acesso universal à informação exige outro tipo de professor, capaz de formular desafios intelectuais mais elaborados, que impossibilitem a cópia literal". O momento deve ser encarado como uma chance de deixar a zona da mediocridade onde a cópia prolifera. Em casos extremos, pasmem-se, alunos chegam até a pagar por trabalhos e teses acadêmicas já prontas, modalidade de plágio que cresce no Brasil junto com a própria inépcia do ensino - e é também impulsionada pela internet. Enquanto os educadores fracassarem na tarefa de transformar a rede numa ferramenta em prol do aprendizado, será impossível eliminar definitivamente a transcrição cega e acrítica de textos que tanto assola as salas de aula.
"Paguei pela monografia"

Sem tempo para escrever a monografia de conclusão do curso de direito nas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), em São Paulo, a hoje advogada C.R. decidiu pagar pelo trabalho pronto. Como havia ali trechos inteiros plagiados da internet, acabou flagrada pela professora e repetiu o ano. "Foi um vexame. Todo mundo ficou sabendo", ela conta. Casos como esse insuflam um mercado que vem crescendo e se profissionalizando com a presença da rede. Antes caseiro e às escondidas, o negócio de venda de trabalhos acadêmicos (desde aqueles para a graduação até teses de doutorado) hoje se propaga por dezenas de sites, em geral sem obstáculos jurídicos. Por falta de denúncias, os casos raramente chegam aos tribunais. São oferecidas comodidades inacreditáveis em se tratando de uma atividade ilícita, como pagamento com cartão de crédito e até boleto bancário, além de atendimento por e-mail ou telefone. O preço dos trabalhos, muitos produzidos por professores universitários, gira em torno de 600 reais. As empresas que prestam esse serviço tentam conferir uma fachada de legitimidade ao comércio ilegal praticado por elas anunciando algo como "fundamentação teórica" para os estudantes. Um mal que cabe às universidades tentar coibir.
http://educarparacrescer.abril.com.br/comportamento/plagio-na-usp-621303.shtml

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