
Quando fazemos uma leitura de algumas das ciências, é bom que não façamos uma leitura errada. Quando fazemos uma leitura de algum filósofo, é bom que não acertemos sempre. Assim, o professor de qualquer ciência nos premia pelo nosso acerto. Mas uma coisa sem graça é receber um prêmio se viermos a acertar em filosofia. A ciência é o espaço do certo e do errado, e é bom que façamos o certo. A filosofia não tem a ver necessariamente com o certo e o errado, mas, se tiver, não raro é melhor que façamos o errado.
Errar em ciência é cometer um equívoco. Errar em filosofia pode ser a única maneira de fazer algo útil. O professor de física ensina as “três leis de Newton” e quer que o estudante as aplique corretamente. Um estudante que não sabe as “três leis de Newton”, não as consegue aplicar, e é um estudante medíocre. Mas, se o professor de filosofia ensina ao aluno a “prova da existência de Deus” de Santo Anselmo, não há mérito algum para o aluno dizer que sabe tal prova. Ele terá algum mérito maior, certamente, se puder errar. Por exemplo, ele pode errar como Gaunilo – um contestador de Santo Anselmo – errou. O aluno que erra, em filosofia, diferentemente do estudante de ciências, talvez não precise voltar para um banco escolar anterior. Ele tem é que avaliar o seu erro. O erro, neste caso, pode ser uma forma inteligente de lidar com a prova em questão.
É claro que boa parte dos erros em filosofia nada é senão erro mesmo – tolices até. Mas, se alguém quiser ser filósofo e não exclusivamente um erudito em filosofia, deve ser capaz de bons erros. A filosofia é o terreno do erro. Um bom professor de filosofia deveria premiar seus alunos com boas notas pelo erro, não pelo acerto. O bom erro em filosofia é, não raro, melhor que o acerto mais agudo em ciências.
Todos os grandes filósofos só foram filósofos porque erraram. Ao lerem seus antepassados, os modificaram à medida que os reapresentaram de modo errado. De certa forma, foram injustos com os filósofos anteriores. Erraram e, assim, os transformaram. Por exemplo, é difícil ler Heidegger e concordar com a leitura que ele faz de Descartes ou de Nietzsche. Quando se é um leitor rigoroso em história da filosofia, ao se deparar com a leitura que Heidegger faz dos filósofos, não há como não dizer: “está errado!”. Heidegger errou. Por isso, fez filosofia. Caso acertasse e, então, reproduzisse Descartes ou Nietzsche como eles se apresentam em um bom manual de história da filosofia, Heidegger seria nada além de um professor de filosofia. Não seria o filósofo que foi. Fazer filosofia para valer é entortar certos autores. Heidegger entortou a maioria que comentou.
É engraçado ver alguns acadêmicos um tanto tolos desenvolver longos trabalhos para “mostrar” que os grandes filósofos leram errado outros grandes filósofos. Esses acadêmicos tentam consertar o erro de quem eles comentam e, então, estragam tudo. Eles confundem ciência e filosofia e, assim, não sabendo que o erro foi que deu ao filósofo posterior o êxito, tentam restituir o que seria a correta leitura do filósofo anterior. Quando vemos isso, temos de rir. Estamos diante de acadêmicos que equivalem a algum néscio que imagina que pode consertar o traçado de um quadro clássico. Talvez alguém que gostasse de arredondar as formas das figuras de Picasso.
Na filosofia cabe o erro, então, de dupla maneira. Primeiro, cabe o erro que é levado adiante pelo candidato a bom filósofo. Os grandes filósofos são os autores desse tipo de erro. Segundo, cabe o erro que levado adiante pelo estudante, que erra exatamente onde pode errar, na filosofia – é aqui que ele aprende a fazer “experiências com o pensamento”. Na filosofia, e não propriamente nas ciências, é que ele pode usar da imaginação de um modo mais livre, efetivamente para errar. O uso da imaginação na ciência é, muitas vezes, o uso de modelos pré-concebidos. Quando se apresentam, já estão praticamente prontos e, se são erros, são postos de lado. O uso da imaginação na filosofia, diferentemente, nunca leva a modelos que possam ser completamente descartados. Modelos errados, nesse caso, às vezes até são mais úteis que os que se apresentam como certos.
Se assim é, digo que em ciências nossas universidades criam pessoas que se tornam tão donas da verdade quanto são as que fazem religião. Nessas mesmas universidades, se há bons filósofos, eles não são donos da verdade porque, em suma, a verdade nem é o que investigam. O que eles fazem é simplesmente o exercício da compreensão. Compreensão do erro.
© 2011 Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor e professor da UFRRJ
já que é eu sou uma filosofa pois erro de mais!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
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