terça-feira, 5 de abril de 2011

A AMIZADE DO AMIGO FELIPPE SERPA: DÁDIVA DO AMAR

Dante Augusto Galeffi

            A amizade não é uma dessas palavras que se possa dizer o que seja.  O dizer da amizade é ser-amigo. A amizade é sempre amante, já disse, entre outros, Hugo Kutscherauer.  O ser amante da amizade é sempre um deixar-ser o outro em sua possibilidade instante.  Não se é amigo por interesse, pois a amizade está além do querer: é um realizar-se duradouro e firme, maleável e incisivo, simultaneamente.  A amizade não é um meio-termo qualquer de uma insignificância infinitesimal egóica. Ser amigo é, antes de tudo, amar-se a si mesmo. Amar-se a si mesmo, por seu turno, é ser o outro de si na plenitude inominável do encontro com a diferença. O amigo nunca é simplesmente amigo. O amigo só é amigo no silêncio da fala. Não se diz para o amigo que se é amigo. Quem é amigo não confirma a amizade na publicidade do gesto. O amor do amigo é amante em si mesmo: ele não se agrega à gangue do falatório dos que temem morrer. O amigo não mede sua amizade no livre comércio das emoções. A amizade não é uma medida que se possa oferecer em praça pública para o consolo e adestramento dos corpos inertes.  Amizade é um substantivo derivado do verbo amar. O verbo da amizade é o amar.  E porque são infinitas as formas do amar, quando se fala do amar é sempre preciso dizer do amar em si mesmo. Quando se fala da amizade é sempre preciso ser amante em si mesmo. É nesta implicação que aqui acolho a amizade do amigo Felippe Serpa como uma dádiva do amar.
            No dia 15 de novembro de 2003, Felippe Serpa realizou a morte. A morte é, para a quase absoluta maioria dos humanos, o maior enigma existente.  Todos tremem diante da morte, sobretudo quando próxima. Felippe, entretanto, fazia parte dos poucos (em quantidade) seres humanos que compreendiam a morte como correlato indissociável da vida. Morte e vida eram, para Serpa, a mesma coisa. Nos últimos tempos ele vinha falando da morte nos termos de uma diferença radical surpreendente,  como se já partilhasse da ordem implícita  do Sóphon que a tudo une na mesma e irrepetível diferença. Felippe escreveu um poema falando dessa diferença originante de Vida e Morte. O poema recolhe as seguintes imagens:
                        “Vida e Morte
                         Gestadas no acontecimento,
                         No estado tensivo
                         Infinito-finito,
                         Vidavivente-vidavivida,
 Jogojogante-jogojogado,
 Instituinte-instituído.
 Em cada acontecimento,
 Precipitação de uma das infinitas possibilidades
 Do ser-sendo,
 Vivemos e morremos.
 Vivemos na tensão da perspectiva do acontecimento,
 Morremos na precipitação do acontecimento,
 E voltamos para o estado tensivo
 Infinito-finito,
 Vidavivente-vidavivida,
 Jogojogante-jogojogado,
Instituinte-instituído,
O eterno retorno.
Na gestação do ser-ente
Está o originário do estado tensivo,
Sem fundamento,
A vida e a morte.
No cessar do estado tensivo
Está a morte,
Finitude
Vidavivida,
Jogojogado,
O instituído.
Para além da morte
O infinito,
A vidavivente,
O jogojogante,
O instituinte,
Também para além da vida.”
(SERPA, Felippe  - Vida e Morte, in:Rascunho Digital
            O amigo Felippe se foi para além da vida e da morte. O seu legado é incomensurável.  Não se pode medir a grandeza de sua obra. Amante da amizade, Serpa foi reconhecido pelos que o amam como Pajé. Sim, Felippe Serpa foi um grande Pajé, para dizer pouco. Sua presença, hoje, persiste em nossa constelação vivente como estrela de luminosidade sapiencial.  Ao seu modo, Felippe viveu a vida dos sábios. Isto ficou mais evidente depois de sua saída do reitorado, quando pode experienciar uma radicalização de seu anarquismo epistemológico em seu modo de ser cada vez mais criança-criadora infinita e jogojogante-vidavivente-instituinte em tudo o que fazia. O amigo Felippe, para mim, deixou o maior presente: sua amizade infinita-jogojogante- instituinte-vidavivente. Felippe, agora, não está mais nem vivo e nem morto:  tornou-se presença-presente em tudo o que é.  A saudade, entretanto, é grande, pois quem haverá de comer do pão e beber do vinho postos sobre a mesa para nutrir os diálogos intermináveis?  Do seu legado maior fica a amizade que nos reuniu em torno do pensar com-sentido, para além da vida e da morte. Felippe Serpa continuará sendo uma dádiva do amar. E porque amante, e porque amigo, para ele “além da vida e além da morte não é vida nem morte”.  Felippe Serpa: o amigo-amante da tensão vida-morte. Assim, mesmo morto ele continua vivo em nós e entre nós. Um abraço inabraçável, amigo: comer o pão, beber o vinho em sua memória, sempre que houver diálogo inquebrantável.

Acesso em: 5 abr. 2011

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