terça-feira, 17 de maio de 2011

O tal do “preconceito linguístico”

A autora do livro “Por uma vida melhor”, que foi distribuído pelo MEC recentemente, quer abolir o que ela chama de “preconceito linguístico”. Para tal, ela imagina que o melhor método é dizer que ninguém mais escreve errado, ou seja, que o “certo” e o “errado” devem ser abolidos da escola, em se tratando do uso de nossa língua. A intenção da autora é boa, mas o caminho que ela pega não é útil. E a sua inutilidade vem do uso pouco aconselhável que ela faz do termo “preconceito”.
Preconceito é, em grande parte, pré-conceito. Ou seja, formamos uma noção que não poderia ser chamada de conceito porque é o nosso entendimento apressado e falho de uma pessoa ou situação ou entidade etc. Assim, no caso imaginado pela autora, alguém que visse uma pessoa falando “nóis vortemo com uma baita di uma reiva”, poderia acabar por julgar a capacidade intelectual e, até mesmo, o caráter moral dessa pessoa por conta desse seu uso da língua distante do padrão da norma culta. Isso acontece? Ou é uma invenção da autora do livro? Acontece. E muito.
Como diminuir isso que a autora chama de “preconceito linguístico”? O primeiro passo é não tratar esse tipo de coisa como se fosse algo do mesmo tipo do preconceito contra a mulher ou o negro ou o gay. Essa é a confusão que atrapalha tudo.
Mulheres, gays e negros não vivem apenas segundo uma prática cultural feminina ou homoafetiva ou afrodescendente. Podem viver ou não. Mas, antes de tudo, são pessoas que estão para sempre no mundo como gays, mulheres e negros, mesmo que não se identifiquem com o conjunto de práticas sociais que caracterizam tais grupos. Não há nada de errado em ser o que se é. Quem é mulher é mulher, quem é negro é negro e quem é gay é gay. Desde o negro (ou da mulher ou do gay) que é completamente integrado em práticas que denotam o que se pode chamar de “consciência negra” ao negro que é negro exclusivamente pela cor da pele (e não por adesão a práticas culturais quaisquer), há um ponto em comum: o olhar do outro o vê como negro. E se o olhar do outro acredita que está vendo alguém “errado” por conta de ser negro, o olhar do outro está contaminado por um preconceito, provavelmente um pré-conceito. Nada disso se aproxima do caso da vítima do que a autora do livro em questão chama de “preconceito linguístico”.
Quem usa a língua fora do padrão da norma culta pode expressar uma cultura particular. É o caso das músicas do gênio Adoniran Barbosa, por exemplo. Mas, para que possamos considerar o Adoniran um gênio, temos de ter a garantia de que uma boa parte do nosso povo se expresse correntemente na norma culta. É a existência da norma culta para a maioria que faz com que possamos olhar para o uso da língua do “boêmio meio analfabeto da noite paulistana” como sendo algo do gênio. Em uma São Paulo que não tivesse pessoas bem escolarizadas, em boa quantidade, e falando a nossa língua segundo a norma culta, Adoniran teria divertido muitos, as suas músicas seriam cantadas e curtidas, é claro, mas ele jamais seria considerado um gênio. Cito esse exemplo para mostrar que a cultura que segue a norma culta é que é capaz de apreciar, sem preconceito, o uso de nosso idioma sem levar em conta a norma culta. Portanto, se a autora de “Por uma vida melhor” autoriza as escolas, direta ou indiretamente, a baixar a guarda diante do uso da norma não culta, confundindo os professores sobre “o certo e o errado”, ela acaba tirando da jogada o que queria preservar: a cultura que não segue a norma culta. Ela destrói o que queria proteger.  Ela fere os bastiões de valorização da norma não culta, que são criados pelos que sabem o valor da norma culta.
O problema, portanto, está na naturalização do uso da língua fora da norma culta. Falar “nói num semu tatu” seria natural, faria parte da pessoa, teria de ser respeitado: respeitando essa fala, estaríamos sem preconceito! Mas as coisas não são assim. Não é nada bom tratarmos o usuário de “nói num semu tatu” como quem pode sofrer discriminação e, então, colocá-lo no atual rol dos discriminados sociais, os que sofrem a partir de preconceitos. Isso lhe daria direitos de “oprimido” para além dos males causados pela opressão contra ele. Isso naturalizaria uma prática nada natural. Quem fala sem a norma culta, se é desrespeitado por isso, antes de tudo precisa ter claro o seguinte: no Brasil, posso (ou deveria poder) sair dessa condição em pouco tempo, basta eu aprender a falar corretamente, uma vez que não sou o Adoniran Barbosa e, portanto, não conseguirei ir muito adiante com essa minha fala.
Ninguém tem de aprender a não ser negro, gay ou mulher. Mas é possível aprender a norma culta de um modo, inclusive, a depois avaliar sem qualquer mágoa aqueles que ainda não aprenderam a norma culta. É possível aprender a norma culta para, inclusive, proteger a cultura que não segue a norma culta. Pois dominar ou não dominar a norma culta não é da ordem da natureza, mas da cultura – e a cultura engloba culturas, no plural. Quem não tinha a norma culta e a aprende, não perde a cultura que um dia foi a sua própria, a que incluía falar como o Adoniran. Ao contrário, aprende os mecanismos pelos quais é possível ver tudo e mais um pouco do que Adoniran realmente foi.
Nesse sentido, o que o governo deve fazer não é o incentivo de livros que confundem a vida escolar, mas pagar melhor os professores e lhes dar condições de trabalho para que possam dar o melhor ensino nas escolas públicas. A escola pública tem de ensinar o que fez Adoniran Barbosa e ao seu lado a norma culta, mostrando as diferenças e os ganhos de cada tipo de cultura. A escola pública não ganha nada se os seus livros, ao invés de fazerem isso, se perdem nas antigas confusões avaliativas, as que não sabiam dizer para o professor que ele pode e deve utilizar da boa ideia de dizer, sim, “certo e errado”.

© 2011 Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ.

Escrevi outro texto sobre o uso da norma culta, não motivado pelo livro em questão: Norma culta, o certo e o errado são relativos e válidos.

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