quinta-feira, 31 de março de 2011

Monografia de Conclusão de Curso


No texto abaixo, Ghiraldelli dá bons conselhos que podem auxiliar em um dos processos mais árduos da vida de um estudante universitário. 
Após essa leitura meus horizontes se expandiram. Na verdade, os textos (e vídeos) deste filósofo sempre estão presentes neste blog porque eles são inteligentes, amadurecem, sensibilizam e, principalmente, nos oportuniza desbanalizar o banal.   

A Monografia de Conclusão de Curso (MCC) em Filosofia da Educação
A Coordenação do Curso de Pedagogia da UFRRJ, pelas mãos da professora Helena Correa de Vasconcelos e com o aval da professora Ana Chiquieri, tornou público o documento de “Orientações Regulamentares para a Monografia de Conclusão do Curso de Licenciatura em Pedagogia”. Tendo esse documento como diretriz geral, segue aqui um escrito específico, de caráter instrutivo, para a confecção da MCC em filosofia da educação.
Como o nome já diz, uma monografia é um texto de temática única. Em filosofia da educação, trata-se de um texto antes próximo do ensaio monotemático que propriamente do paper ou artigo científico. O paper ou artigo apresenta de maneira sucinta os resultados de uma pesquisa e as conclusões parciais ou finais inferidas desses resultados. O ensaio é, diferentemente, um texto de caráter dissertativo que, enfim, se aproxima da narrativa que visa “contar uma história” em que a exposição e a argumentação se entrecruzam.
No nosso caso, a monografia é um ensaio monotemático em filosofia da educação, isto é, uma dissertação a partir de um único tema, em que o autor expõe situações, condições e histórias e, ao mesmo tempo, fornece argumentos de modo a tornar o leitor convencido de que o que diz é bastante razoável de se acreditar.
A monografia em filosofia da educação pode muito bem se basear em uma pesquisa e, em geral, é realmente assim que ela se constitui. No entanto, não se trata aí de uma pesquisa laboratorial, em que todo o evento a ser estudado e do qual se tirará conclusões é um experimento. Nesse caso, a base é antes a experiência de leitura, às vezes associada à experiência de vida, que fornecerá o tema e, não raro, também o fio condutor da narrativa do ensaio monotemático.
A pesquisa científica tem por centro o experimento e gera o paper ou artigo. A pesquisa em filosofia tem por centro a experiência (de leitura e vivência) e gera o ensaio ou o ensaio monotemático – a monografia.  Por sua vez, a pesquisa em filosofia da educação, para o caso específico aqui, tem no centro a experiência de leitura e vivência no âmbito pedagógico relacionadas a um tema do “assunto educação”, muito bem recortado. Esse recorte se faz, efetivamente, no decorrer da própria narrativa que deve gerar a monografia. O recorte se mostra no próprio ensaio monotemático, ou seja, ele é o resultado final; isto é, ele é a monografia delimitada pelo que diz expositivamente em termos de pedagogia e o que diz argumentativamente em termos das justificações filosóficas dessa pedagogia.
Um exemplo ajuda muito.
O material empírico da pesquisa em filosofia são os livros, são os escritos, em geral os escritos dos filósofos. O material empírico da pesquisa em filosofia da educação são os escritos educacionais. Eles podem estar no campo da política educacional ou das doutrinas pedagógico-didáticas ou da legislação educacional ou no campo das discussões da psicologia educacional envolvidas numa proposta pedagógica etc. Em geral, aqueles textos que marcaram época e lugar e que, enfim, se tornaram capazes de mostrar, na sua particularidade, características relativamente universais, são os objetos preferidos. Eles são, por essas qualidades, o que chamamos de livros ou documentos clássicos da educação. Assim, se aqui vamos para um exemplo, podemos ter como objeto um documento clássico da educação brasileira, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932.
O nosso objeto está escolhido. O que fazemos agora? Ora, o primeiro trabalho é lê-lo despreocupadamente. Temos de saber do que se trata. Temos de curtir o nosso objeto, gostar dele, vê-lo como algo que desnuda um mundo interessante. Amar o objeto é uma boa pedida nessa hora. Odiar até pode ser uma boa pedida, mas não em um trabalho inicial. Odiar algo e escrever sobre ele não é para iniciantes. O Manifesto é um texto possível de ser amado. Ele apresenta uma proposta ampla e generosa para a educação brasileira, redigida por Fernando de Azevedo e assinada por vários outros intelectuais. Foi publicado em um ano chave, 1932, o ano em que Vargas entrou em conflito com os paulistas que, enfim, cobravam do chefe da Revolução de Trinta uma Constituinte prometida e que, até aquele momento, não tinha aparecido. O Manifesto nasceu com a pretensão de fornecer ao novo governo um programa de ação para a educação. Tratava-se de uma oferta para a Revolução de Trinta. Uma tentativa dos intelectuais mais diretamente ligados a São Paulo e Rio de Janeiro de marcar posição quanto aos caminhos educacionais do novo governo. Desde o seu início, o Manifesto se mostrou um texto capaz de se tornar um clássico, e assim realmente se deu.
Passada essa etapa do trabalho, talvez possamos ler alguns comentadores do Manifesto, de períodos diferentes, tanto da época em que foi publicado como depois. Esses autores comentadores são os que falaram do conteúdo do Manifesto, apoiando-o ou combatendo-o à medida que mais próximos da data de sua publicação. Mas, quando tomamos os comentadores mais distantes da data de publicação, vemos então o que foi decantado do texto, o que ficou e o que foi dispensado como “meramente datado”. No caso, o Manifesto foi produzido por intelectuais laicos, a maioria deles de formação liberal. A oposição ao Manifesto veio da esquerda e da direita, mas somente o registro da direita valeu para a época. Os intelectuais católicos é que o analisaram – e bem – para, enfim, erguer diante dele sérias objeções. As análises posteriores, no entanto, trouxeram rapidamente leituras históricas, praticamente enfatizando essa oposição entre liberais e católicos que citei.
A partir daí podemos, então, voltar ao próprio texto. Chegou a hora de, olhando bem o interior do Manifesto, escolhermos o tema único, aquele tema que vale a pena ser desenvolvido.
O Manifesto tem uma divisão nítida, geral, fácil de ser identificada: ele é um texto de política educacional e é, também, um texto de diretrizes pedagógico-didáticas. Ele diz o que o governo deve fazer em termos da educação brasileira e também como a escola deve se organizar para potencializar a relação ensino-aprendizagem. Qual desses dois temas pode ser o nosso tema? No nosso ensaio, podemos mencionar essa divisão, mas, enfim, para obedecermos a característica do nosso trabalho temos de optar por um tema, por um eixo de condução de nosso escrito. Enfim, temos de fazer o ensaio monotemático – a monografia. Escolhemos, então, a parte “pedagógico-didática” (o motivo dessa escolha é bastante subjetivo, mas nos saímos bem quando optamos em razão da nossa maior desenvoltura com o assunto escolhido). Nessa hora, relemos o texto já anotando tudo que nele se refere a esse assunto, tudo que é de pedagogia e, enfim, não é de política educacional.
Em seguida, voltamos aos comentadores. Avançando nas leituras dos comentadores começamos a ver o que disseram do Manifesto, levando em conta o tema escolhido, o da doutrina pedagógico-didática. A essa altura do trabalho, já sabemos que a doutrina é, em termos gerais, a da “escola ativa” e, portanto, as diretrizes pedagógicas aí postas são as do movimento da Escola Nova. Distinguimos essa doutrina, observamos o seu caráter, o que ela tem das várias contribuições estrangeiras e nacionais e, então, olhamos para o Manifesto como quem pode identificar qual Escola Nova está ali presente. Nesse momento, podemos parar nossa leitura para uma pesquisa mais ampla sobre a Escola Nova, se percebermos que estamos despreparados para compreender os detalhes da doutrina pedagógica e psico-pedagógica do Manifesto.
Não raro, é nessa hora que podemos nos frustrar, vendo que nos faltou informações no curso de graduação de pedagogia, no âmbito das matérias básicas. Mas, sempre temos de notar que, se assim ocorreu, a monografia é exatamente um momento de volta aos estudos, em especial estudos sobre aquilo que não foi visto durante o curso. Quando escrevi o Filosofia e história da educação brasileira (Manole, segunda edição, 2008), em boa medida eu imaginava um livro capaz de suprir essas deficiências de um curso de pedagogia, um livro que atuasse não só em sala de aula, mas que se tornasse importante na hora da monografia de final de curso.
Feito isso, podemos considerar que demos um passo importante. Então, mais uma vez relemos o Manifesto. Nessa linha, vamos para as justificações do Manifesto, ou seja, a argumentação filosófica da Escola Nova, aquela Escola Nova presente no Manifesto. Quando elaboramos em nossa escrita essas argumentações postas pela filosofia da educação de tal doutrina, tanto na sua matriz (seus livros básicos) quanto no que o documento (o Manifesto) apresenta, eis que estamos no momento exato de começarmos a realmente redigir o ensaio como um todo. A essa altura já escrevemos alguma coisa e já sabemos se é John Dewey ou não que está na base da Escola Nova do Manifesto. Também já sabemos, é claro, que Paschoal Lemme foi um signatário e que, enfim, foi o último a falecer e deixou três volumes de “Memórias”, que dão bem a característica do tipo de Escola Nova que se fez presente no Manifesto.
Daí para diante, o que temos de fazer é contar a “história do Manifesto”, como ele foi produzido, quem foram seus autores, o que ele diz e quais as suas justificativas para aquela pedagogia que defendeu e que propôs. Nessa hora, quando somos iniciantes, nunca conseguimos não seguir um roteiro de um dos comentadores. Não raro, tendemos a nos afeiçoar ao que esteve mais próximo do documento analisado, o nosso objeto. Trata-se do comentador capaz de fornecer os detalhes e as miudezas sobre a produção do texto. Paschoal Lemme é o indicado aqui, pois ele foi aquele que, em nome do redator principal do Manifesto, Fernando de Azevedo, passou de casa em casa para que outros viessem a endossar e assinar o texto.
Como iniciantes, é difícil nos desprendermos desse comentador que, com a autoridade da presença diante do Manifesto, nos faz calar. Mas, com o tempo, em um segundo trabalho sobre o assunto (uma dissertação de mestrado?), talvez tenhamos condições de nos afastarmos bem (ainda que isso não seja uma necessidade) do autor que, inicialmente, foi o nosso guia histórico do primeiro trabalho.
Após tudo isso, o trabalho, então, é o de escrever e reescrever mais e mais vezes, até tornar o nosso texto monográfico conquistador, capaz de fazer um bom leitor não desistir dele. Por fim, podemos colocar as notas de rodapé, podemos melhorar aquelas notas que implicam em citações e referências. Cabe a esse momento, também, a tarefa de colocar o excesso de informação em notas de rodapé, de modo que esse excesso não atrapalhe o corpo do texto, tornando a leitura um tanto dispersa e, talvez, enfadonha. O nosso texto monográfico deve proporcionar uma leitura fluente e, para tal, devemos ser habilidosos em casar o caráter expositivo com o caráter argumentativo, próprio de um ensaio. Mas, temos de entender, essa habilidade só surge com o treino, com a constante prática de escrever e ser lido e criticado.
Para terminar e selar o serviço: caprichamos em uma revisão geral inicial no estilo, nos tempos verbais e nas imperfeições lógicas do texto. Deleitamo-nos com a escolha de algumas gravuras internas que, de preferência, poderiam ser inéditas – isso sobrevaloriza a monografia e mostra um capricho final, que sempre conta a favor de seu autor.
Precisamos de uma conclusão? É bom termos uma conclusão, onde sintetizamos a nossa experiência de leitura do texto clássico, o que implicará em nós mesmos arriscarmos dizer algo mais pessoal a respeito da Escola Nova e da Escola Nova embutida no Manifesto. Não necessariamente precisamos defender uma leitura contra a leitura de um ou outro comentarista. Essas divergências, se as encontramos, podem ser transferidas todas para notas de rodapé, a não ser que um dos comentadores tenha se tornado, do ponto de vista da filosofia da educação, um clássico de interpretação do Manifesto. Por exemplo, podemos acreditar que as críticas de Alceu de Amoroso Lima ao Manifesto não podem ser dispensadas. Todavia, nos trabalhos a respeito do Manifesto, a historiografia da filosofia da educação brasileira não parece apresentar um comentador clássico obrigatório. Em todo caso, é também uma questão de se avaliar ao final, se há ou não necessidade de dar importância para uma ou mais leituras do Manifesto, divergentes da nossa. Eis aí, por fim, nossa monografia em filosofia da educação pronta. O título: “A pedagogia do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova”.
Um trabalho como este, para um aluno da licenciatura em pedagogia, custa um tempo de mais de dois anos de envolvimento semanal com a leitura e produção de textos, corrigidos sempre pelo seu orientador. Por isso, minha sugestão é que o estudante de pedagogia não deixe o trabalho para o ano final de seu curso. Não seguindo essa minha sugestão, terá dificuldades enormes em conseguir fazer algo descente, capaz de ser avaliado e defendido em banca de argüição pública. Pense nisso.

©2010 Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ
http://ghiraldelli.pro.br/ufrrjcursos/monografia-de-conclusao-de-curso/

Nenhum comentário:

Postar um comentário